A vacina vai aparecer, mas vai pertencer a quem?

Direito e Tecnologia #5

Coluna no Odivelas Notícias de 21 de Maio de 2020



Se há algo que parece ser consensual entre os cientistas da área é que uma vacina para a Covid-19 vai aparecer. Subitamente passou a haver grandes fundos para pesquisa científica, e muitos grupos de cientistas estão agora a trabalhar em exclusivo na busca pela vacina, alguns até já começaram ensaios clínicos em humanos. Ainda poderá demorar um ano ou mais até a vacina estar disponível, também devido aos testes de segurança que é necessário realizar, e existe alguma incerteza sobre o nível de eficácia que poderá ser alcançado, mas mais tarde ou mais cedo a vacina vai aparecer. Mas quando a vacina aparecer, quem será o seu dono? Quem terá os direitos sobre ela?

O sistema actual funciona através de patentes. O Estado concede ao inventor uma patente, isto é, um direito exclusivo para explorar economicamente - e ao preço que quiser - a sua invenção, durante um período de 20 anos, findo o qual a patente pode ser utilizada livremente por qualquer pessoa ou empresa. Pelo menos em teoria, o sistema pretende compensar todo o investimento financeiro necessário para que a empresa conseguisse alcançar aquela solução, e ainda dar incentivos para que o continue a fazer de futuro, procurando novas soluções para outros problemas. Na prática, a coisa é um pouco mais complicada.

Os portugueses ainda se lembrarão de um momento dramático, em 2015, quando na Assembleia da República, um cidadão doente de Hepatite C se dirigiu ao então Ministro da Saúde Paulo Macedo e, à frente das câmaras e dos jornalistas, suplicou: “não me deixe morrer!”. Na altura existia já uma cura para a Hepatite C mas ainda não era comparticipada pelo Serviço Nacional de Saúde pois os preços eram considerados impraticáveis. No dia seguinte era anunciado um acordo que permitia a todos os doentes portugueses ter acesso à cura. Igualmente se lembrarão do famoso caso da bebé Matilde, em que o medicamento que podia dar alguma esperança de cura custava 2 milhões de euros. Numa onda de solidariedade sem precedentes, os portugueses angariaram dinheiro para o tratamento, e posteriormente o SNS também o cobriu.

Quanto vale uma vacina para a COVID-19? Quem a deverá pagar?

Os direitos de propriedade intelectual apenas se justificam pois existe um interesse público por trás da proteção concedida, neste caso, ao inventor. O Estado não concede direitos exclusivos (um monopólio) de exploração económica de uma invenção que poderia desde logo beneficiar toda a gente, apenas porque gosta muito de inventores. Fá-lo, porque quer encorajar a criatividade e a invenção de novas soluções, como novos medicamentos, que acabarão por beneficiar toda a gente. Para tal é necessário que exista um incentivo financeiro a essa atividade. Neste sistema, o incentivo passa pela criação artificial de escassez do produto, por parte do Estado. Não é que não se saiba ou não se consiga reproduzir determinada solução, simplesmente o Estado proíbe-o, de forma a que ela tenha de ser adquirida ao inventor. Passados 20 anos, a invenção passa então a pertencer à humanidade.

No entanto, todo este sistema é muito questionável, produzindo não poucas vezes situações que são ética e moralmente questionáveis, em que uma cura para determinada doença existe, está disponível e tem um custo de produção baixo, mas deixamos que pessoas morram por não poderem pagar o preço de venda. Defensores do sistema dirão que toda a pesquisa científica tem de ser paga e que há muita pesquisa que simplesmente não produz resultados (não obtém uma patente), mas que também é necessária. Críticos do sistema depressa apontarão os lucros astronómicos de muitas farmacêuticas, em resposta.

Este sistema também assenta muito numa ideia romantizada do que é a criação intelectual, em que as invenções surgem repentinamente, num rasgo de génio, num momento ah-ha de uma qualquer mente brilhante. Na verdade, a grande parte das invenções são apenas a etapa final de um longo processo de aquisição de conhecimento científico que é colaborativo e cumulativo, acontecendo lentamente um pouco por todo o mundo, e que é amplamente financiado por dinheiros públicos. Justificar-se-à então atribuir direitos exclusivos a quem apenas realiza o último passo? Especialmente quando esse último passo que é preciso dar é mais ou menos óbvio e acaba por ser a sorte a ditar quem consegue ser o primeiro a torná-lo realidade?
É uma discussão antiga mas que ganha outra dimensão em tempos de uma pandemia como a da Covid-19. Será preciso produzir vacinas numa escala nunca antes vista. Todos os países do mundo precisarão de a ter, incluindo países sub-desenvolvidos, caso contrário nenhum país estará realmente seguro.

Em tempo de pandemia, o sistema de propriedade intelectual torna-se um obstáculo, pois é utilizado para impedir a disseminação de conhecimento e a produção e o acesso a medicamentos. Por outro lado, a forma mais eficiente de avançar o conhecimento científico é partilhar o conhecimento - não ocultar o conhecimento. Se todos os cientistas souberem o que os outros andam a fazer e trabalharem em conjunto, vão bastante mais longe do que se trabalharem de forma isolada, esperando assim conseguir o direito exclusivo da patente.

Nesse sentido, algumas das maiores empresas do mundo juntaram-se no movimento Open Covid Pledge, que visa partilhar, através de licenças abertas e gratuitas, propriedade intelectual relacionada com a pesquisa contra a Covid-19. Em carta aberta, os presidentes da África do Sul, Gana, Senegal, e primeiro-ministro do Paquistão, entre muitas outras personalidades e antigos líderes de países, incluindo José Manuel Durão Barroso, defenderam “uma vacina para todos”, pugnando pela partilha obrigatória a nível mundial de todos os conhecimentos, dados e tecnologias Covid-19, e licenças livremente disponíveis para todos os países. Os “Médicos sem Fronteiras” declararam-se publicamente contra patentes e exploração económica de medicamentos, testes ou vacinas relacionadas com a Covid-19, e apelaram aos governos para se preparem para “suspender e anular patentes, controlar preços, garantir a disponibilidade, reduzir os preços e salvar mais vidas”.
A líder da Comissão Europeia declarou que a vacina será um “nosso bem comum universal".

Para tal acontecer será preciso flexibilizar a propriedade intelectual - o que aliás tem estado a acontecer um pouco por todo o mundo. Os mecanismos de resposta de que esta dispõe, como a emissão de licenças compulsórias, apresentam dificuldades e podem não ser suficientes. Em todo o caso, é expectável que as farmacêuticas não conformem, o lucro potencial é colossal e certamente não deixarão de recorrer a todos os meios legais para combater as medidas que os Estados possam tomar em prol do bem comum.

Eduardo Leonardo dos Santos
Advogado
Presidente da Associação D3 - Defesa dos Direitos Digitais
www.direitosdigitais.pt

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