Diário de Notícias | Metadados: o Tribunal Constitucional tem costas largas

Artigo de opinião publicado na edição impressa e online do Diário de Notícias de 4 Março 2023.

Tem prevalecido no espaço público a ideia de que o acórdão do Tribunal Constitucional (TC) sobre a lei dos metadados criou um problema. Pelo contrário, o TC resolveu um problema que há anos se arrastava na nossa ordem jurídica. Em 2014, o Tribunal de Justiça da UE (TJUE) invalidou a diretiva que deu origem à lei dos metadados. Apesar disso, em Portugal continuava a aplicar-se a lei, pese embora os alertas da CNPD. Durante anos o legislador preferiu ignorar o problema, até por fim ele rebentar-lhe nas mãos com o acórdão do TC, num processo iniciado pela Provedora de Justiça, na sequência de uma queixa por nós apresentada.

Essencialmente, o TJUE rejeitou a vigilância massiva dos metadados das telecomunicações, em que todos os cidadãos são tratados como suspeitos. Em duas decisões, de 2014 e 2016, o TJUE invalidou a diretiva e considerou inadmissível a recolha geral e indiscriminada de metadados de tráfego e localização das telecomunicações de toda a população, por excessivamente invasiva de direitos fundamentais.

Dada a jurisprudência vinculativa do TJUE, a decisão do TC não podia ser outra (e não adianta alterar a Constituição). Juridicamente, o acórdão é inatacável. Os ataques públicos ao TC visam lançar uma cortina de fumo sobre os verdadeiros responsáveis pela situação. Vamos lá ver: Quem é que, sabendo da invalidade da diretiva desde 2014 e conhecendo o problema do uso de metadados, enterrou a cabeça na areia e recusou alterar a lei? Quem é que durante anos continuou a recorrer a prova que, afinal, não era admissível? Quem baseou acusações criminais nos alicerces que ora desmoronam? Não admira, pois, tanto empenho em culpar o TC. Mas quando o VAR anula um golo marcado com a mão, a culpa é do VAR, que se limita a assinalar a ilegalidade do lance, ou de quem recorreu a métodos ilegais?

A vigilância massiva da população é tentadora para quem faz investigação criminal, pois facilita o seu trabalho. Para esses, a eficácia é justificação bastante. Mas os limites constitucionais à investigação criminal tutelam valores além dos sonhos de uma investigação fácil, de sofá. É evidente que vigilância massiva é incompatível com Estados de Direito democráticos. Para contornar tal "obstáculo", há quem avance uma originalidade a que chamo "proporcionalidade do cofre de segurança". Segundo este entendimento, a vigilância massiva da população é proporcional e justificada desde que a informação recolhida fique contida num "cofre seguro", ao qual só se acede com autorização. Veja-se: a devassa da vida privada dos cidadãos seria permitida ao Estado, desde que este guardasse a informação num cofre bem fechado! Obviamente que nenhum sistema informático consegue realmente garantir a segurança dessa informação. Mas, mais importante, este entendimento ignora que a agressão a direitos fundamentais começa no momento em que a vigilância é realizada. É nesse momento que os efeitos sociais perniciosos da vigilância se fazem sentir, moldando comportamentos sociais. Ninguém é livre sob vigilância permanente. Se, posteriormente, a informação guardada no cofre ainda for acedida, esse é já um segundo momento de agressão.

Deixemo-nos de populismos securitários e respeitemos as decisões judiciais. Novos tempos sopram na Europa e fora dela, o autoritarismo espreita. Não sabemos quem estará amanhã no poder. Também por esse motivo, a defesa do Estado de Direito democrático só pode passar pelo reforço dos nossos valores fundamentais e da defesa dos direitos, liberdades e garantias.

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