Novos desafios às tecnologias da informação
Direito e Tecnologia #1
Coluna no Odivelas Notícias de 8 de Abril de 2020
Novos desafios às tecnologias da informação
Sejam bem vindos a esta coluna que, como o nome indica, abordará temas relacionados com Direito e Tecnologia, duas áreas que vivem uma relação íntima mas nem sempre pacífica.
Em tempo de pandemia, o assunto COVID-19 é inevitável. No que diz respeito a Direito e Tecnologia, foram muitos os problemas e desafios colocados, não só em Portugal mas em todo o mundo: aumento dos mecanismos de vigilância sobre a população; necessidade de conciliar a necessidade de fornecer dados a cientistas e investigadores ao mesmo tempo que se protege os dados de saúde dos doentes, que são considerados dados especialmente sensíveis; permitir que fornecedores de Internet possam tomar medidas de controlo de tráfego, em detrimento do princípio da neutralidade da Internet; problemas de moderação nas plataformas de redes sociais relacionados com o facto de as equipas de moderação não estarem preparadas para trabalhar a partir de casa, e a moderação automática ainda ter bastantes limitações; entre outros. Mas talvez nenhum destes problemas seja tão visível à população em geral como os desafios que ora se colocam ao nível do Ensino.
Com as crianças e jovens a terem repentinamente de estudar a partir de casa, as famílias deparam-se com vários problemas tecnológicos. Desde logo, uma boa parte da população não dispõe em casa de computadores em número suficiente para uma utilização intensiva e simultânea de filhos e pais (que estejam eventualmente em teletrabalho), ou não dispõe de todo de computadores. O programa Magalhães, descontinuado há cerca de 10 anos, e que visava garantir que cada aluno tivesse pelo menos um pequeno computador de baixo custo à sua disposição, faz hoje bastante falta - talvez fosse boa opção ponderar novamente um programa semelhante. Também a ligação à Internet não é um dado adquirido nas famílias portuguesas, principalmente uma ligação de banda larga de qualidade e sem limites de consumo. Tal coloca óbvios desafios de igualdade de oportunidades.
Mas não são esses os únicos problemas. A necessidade de prosseguir com as actividades lectivas, mesmo à distância, levou a que escolas e professores tivessem de procurar rapidamente soluções tecnológicas. De entre as soluções encontradas, uma ganhou especial relevância, destacando-se primeiramente pela qualidade e estabilidade das suas videochamadas e posteriormente por um sem fim de revelações sobre os problemas que escondia. Pouco a pouco o Zoom foi parar à imprensa internacional. Ele era: falhas de segurança ( hacks ); falta de privacidade; comunicação de dados ao Facebook (mesmo de quem não tem conta) e ao Linkedin; um sistema de encriptação que não cumpre os requisitos para ser seguro; uma falha que permitia o roubo de passwords do Windows; outra falha que permitia assumir o controlo da câmara e microfone de computadores Mac., etc. Muitos destes problemas não resultam de meras falhas (bugs) do software - qual o software que nunca as teve? - mas sim de comportamentos negligentes da empresa. Enfim, o Zoom é um pesadelo, a ponto de se poder colocar a questão de uma eventual responsabilização das entidades que, apesar de tudo o que veio a público, continuem a obrigar à sua utilização. Por exemplo, a cidade de Nova York já proibiu a sua utilização por parte das escolas públicas.
Fosse o Zoom o único problema…
Algumas das alternativas ao Zoom implicam a utilização de serviços de empresas como a Google e a Microsoft. Regra geral, a utilização destes serviços implica a aceitação de termos e condições que não são minimamente aceitáveis em contexto escolar, pois transformam o utilizador, neste caso crianças e jovens, no produto. Essas ferramentas normalmente recolhem dados pessoais dos utilizadores, utilizando-os para fins comerciais; não garantem a privacidade das comunicações; obrigam à cedência de direitos sobre os conteúdos que são enviados, etc.
De semelhantes problemas sofrem também as plataformas de ensino virtual disponibilizadas por editoras, algumas das quais agora até se tornaram gratuitas… mas só enquanto durar a pandemia.
Qual a solução?
Não é fácil. No curto prazo, deve optar-se preferencialmente por software livre, como por exemplo o Jitsi Meet, para videoconferências. (Software livre é software que permite uma série de liberdades ao utilizador, sendo uma delas a possibilidade de abrir o capot e espreitar o motor - figurativamente falando - para ver se o que está dentro do software é efectivamente aquilo que o fabricante anuncia).
No médio e longo prazo, deverá ser o Estado a fornecer uma infraestrutura própria para o Ensino.
Claro que esta é uma das muitas faces de um problema mais profundo: temos graves problemas de falta de infraestrutura tecnológica do Estado, a ponto de se tornar um problema de soberania tecnológica. É preciso entender que as plataformas tecnológicas que utilizamos não são um produto de aquisição única, são autênticas infraestruturas: serviços essenciais, que precisam de investimento, de desenvolvimento e manutenção por pessoal qualificado. Nem tudo pode estar exclusivamente dependente de prestadores de serviços externos. Urge ensinar os nossos estudantes a terem espírito crítico sobre as plataformas que utilizam, e a conhecerem as tecnologias - não produtos. Ensinar e educar para a tecnologia não é formar utilizadores avançados de determinados produtos comerciais.
Eduardo Leonardo dos Santos
Advogado
Presidente da Associação D3 - Defesa dos Direitos Digitais
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