As 26 palavras que criaram a Internet

Direito e Tecnologia #6

Coluna no Odivelas Notícias de 18 de Junho de 2020


Fartos das mentiras e da desinformação que o Presidente Donald Trump espalha na Internet através da sua conta de Twitter, e que não seriam permitidos a um utilizador comum, a própria empresa Twitter decidiu tomar medidas. Passou a fazer acompanhar algumas das publicações mais questionáveis do Presidente dos EUA de avisos com ligações para verificação de factos, realizada por órgãos de comunicação social reputados, de forma a melhor elucidar os leitores sobre os factos em causa nas publicações. Posteriormente, o Twitter assinalou mesmo uma outra publicação de Trump com um aviso sobre incitação à violência, por parte do Presidente. Nenhuma publicação foi alterada ou removida, pelo menos por enquanto.

Escusado será dizer que, num clima tão politicamente polarizado como o que se vive hoje em dia nos EUA, o Twitter abriu uma guerra política, que se estende na verdade a todas as plataformas da Internet. Qual o papel que as plataformas devem desempenhar? Têm deveres sobre os conteúdos que os seus utilizadores publicam? Devem dar toda a liberdade aos utilizadores para escreverem o que quiserem, ou antes devem policiar tudo o que é escrito? Devem os responsáveis políticos ter mais direitos que o comum cidadão?
O Facebook, que beneficia da muita da desinformação que é amplamente espalhada na sua plataforma, tomou partido contra a atitude do Twitter, com o fundador Mark Zuckerberg a dizer publicamente que "o Facebook não deve ser o árbitro da verdade de tudo o que as pessoas dizem online".

No centro do debate está a chamada "Secção 230", a parte relevante da lei americana aplicável a esta questão. Em particular, uma pequena passagem composta por 26 palavras, que Jeff Kosseff apelida de "As 26 palavras que criaram a Internet", no seu livro com o mesmo nome. Em suma, diz a lei que as plataformas não devem ser consideradas como editores ou autores dos conteúdos que são publicados pelos seus utilizadores. Isto é precisamente o contrário do que acontece nos jornais, revistas, canais de TV ou estações de rádio, que assumem a responsabilidade editorial sobre os conteúdos que publicam, mesmo quando são escritos e assinados por terceiros. Este regime legal é portanto uma limitação da responsabilidade das plataformas sobre o que seus utilizadores nelas publicam, e foi de facto fundamental para o surgimento da Internet tal como a conhecemos. Se a Internet tivesse de funcionar como um jornal ou uma televisão, não teríamos a liberdade que temos de publicar o que bem entendemos na Internet, em plataformas como o Twitter ou o Facebook. Teria de haver sempre um editor que iria verificar se o que queremos publicar poderia ser publicado e certificar-se que não haveria perigo para a sua plataforma, ou seja que esta não poderia ser responsabilizada pelo que queríamos lá colocar. Afinal, se o editor pode ser responsabilizado pelo conteúdo publicado, também tem de ter o direito a decidir o que é ou não publicado.

Jornal, rádio e televisão são meios de comunicação que funcionam num só sentido. Existe uma entidade que emite a informação, e todos nós somos os receptores da informação transmitida. Já a Internet é uma via de múltiplos sentidos, em que todos nós somos ao mesmo tempo emitentes e receptores de informação. Portanto não podem ter as mesmas regras de funcionamento. Se pensarmos nos maiores sites da Internet, quase todos eles dependem de conteúdos que são enviados pelos utilizadores.

Vejamos o exemplo do Youtube, que disponibiliza mais de 400 novas horas de vídeos a cada minuto. Ou seja, se quiséssemos ver todos os conteúdos que são publicados no Youtube num determinado minuto de um determinado dia, precisaríamos de estar quase dois meses a ver vídeos, durante 8 horas de vídeos por dia, para ver tudo o que foi publicado apenas num minuto. É uma escala colossal.

No entanto, tanto os EUA como na União Europeia começam agora a colocar em causa esta limitação de responsabilidade das plataformas. Nos EUA, a primeira ordem executiva de Trump não teve efeitos práticos e serviu mais como manobra política, mas tanto o Presidente Trump quanto o presumível candidato democrata Joe Biden já se pronunciaram publicamente no sentido de ser necessário rever estas regras. Na União Europeia, o Digital Services Act é um dossier prioritário da Comissão Europeia, e vem rever as regras da Diretiva do Comércio Eletrónico, que estipulam regras para as plataformas que são parecidas à da Secção 230 dos EUA. No regime atual, uma plataforma só poderá ser responsabilizada se tiver conhecimento - ou lhe for comunicada - a presença de conteúdos ilícitos e não o remover de forma célere. A consulta pública relativa ao Digital Services Act começou na semana passada e o processo legislativo vai certamente demorar anos. Ainda não conhecemos os posicionamentos políticos dos eurodeputados e partidos europeus, mas a ideia de acabar com a limitação de responsabilidade das plataformas tem ganho adeptos, o que é deveras preocupante.

Só podemos ter liberdade de expressão online se as plataformas não puderem ser directamente responsabilizadas pelo que nós - e não as plataformas - decidimos lá colocar. Cada um de nós deverá responder pelo que publica, da mesma maneira que respondemos por tudo o que fazemos fora da Internet. Responsabilizar os intermediários - que servem apenas de ferramenta - é uma má solução, pois levará a que estes, por sua vez, e para se protegerem, reduzam a liberdade que nos concedem e passem a ter de controlar o que podemos ou não dizer na sua plataforma. Por exemplo, se as plataformas não gozassem dessa limitação de responsabilidade, o movimento #MeToo não teria ocorrido, pois as empresas temeriam ser responsabilizadas por difamação sempre que alguém denunciasse casos de assédio e agressão social, principalmente quando os acusados eram famosos e influentes. De igual forma, sem as plataformas seria quase impossível partilhar e divulgar os registos de vídeo que denunciam abusos policiais e que levaram aos protestos históricos que têm decorrido nos EUA. Não é que não haja problemas sérios na Internet, eles existem e devem ser combatidos. Mas exigir que as plataformas sejam tratadas como editores de informação é a pior das soluções. Não transformemos a Internet numa nova TV.

Eduardo Leonardo dos Santos
Advogado
Presidente da Associação D3 - Defesa dos Direitos Digitais
www.direitosdigitais.pt

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