Por que razão plataformas não devem ser consideradas editores
Ultimamente, no discurso público em Portugal, tem vindo muito à baila a ideia de que as plataformas devem ser responsabilizadas pelos conteúdos dos seus utilizadores, tal como um editor de jornal pode ser responsabilizado pelo texto de um cronista. Responsabilização é uma palavra forte, fica bem nos discursos de políticos e de comentadores. Infelizmente, neste caso, não faz sentido.
Esta foi uma moda que começou com Trump, não era de esperar que fizesse escola em Portugal, da esquerda à direita. É um fenómeno curioso, já que este assunto está a ser amplamente discutido neste preciso momento no Parlamento Europeu, e ninguém defende tal coisa. O próprio Digital Services Act, uma proposta legislativa muitas vezes apresentada como a resposta europeia às grandes multinacionais tecnológicas norte-americanas, é bastante claro em relação à manutenção das regras sobre responsabilidades dos intermediários:
A proposta mantém as regras em matéria de responsabilidade dos prestadores de serviços intermediários estabelecidas na Diretiva sobre o comércio eletrónico – atualmente reconhecida como base da economia digital e determinante para a proteção dos direitos fundamentais em linha.
Vamos então às razões.
Existem dois tipos de responsabilidade, neste contexto: directa e indirecta. Quem publica um texto, onde quer que seja, é sempre directamente responsável pelo seu conteúdo - aqui não há grandes dúvidas. A questão complica-se em relação à responsabilidade indirecta de terceiros envolvidos no acto de publicação. Que tipo de envolvimento e em que condições se justifica que sejam considerados indirectamente responsáveis?
Controlo e responsabilização são conceitos intimamente ligados. É o controlo que justifica a responsabilização. Não pode haver responsabilização de alguém que não teve controlo ou domínio sobre determinada acção. Entenda-se "controlo" como o poder editorial. Um editor, mesmo não podendo interferir no conteúdo do texto do cronista, tem o poder de dizer não, de rejeitar publicar um texto. Deve ler e aprovar tudo o que é publicado no seu jornal. Ao decidir aceitar um texto e ao decidir publicá-lo, assume também ele a responsabilidade, indirecta, por aquele conteúdo.
O facto de as plataformas efectuarem moderação e usarem algoritmos para mostrar ou sugerir conteúdos não as transforma em editores. A grande diferença entre plataformas (como Youtube ou Facebook) e editores é que as plataformas não escolhem publicar nada, elas permitem publicar. São meras ferramentas que possibilitam aos utilizadores publicarem eles próprios os seus conteúdos. Não verificam o conteúdo previamente, não tomam uma decisão livre e consciente de publicar determinado conteúdo. Logo, não têm conhecimento sobre o conteúdo de determinado conteúdo em específico, mesmo que este esteja alojado nos seus serviços. Se Facebook ou Youtube tivessem de verificar cada post ou vídeo que cada um de nós para lá envia, simplesmente não existiam.
Por um lado, há a questão da escala. Os utilizadores enviam para o Youtube mais de 500 horas de conteúdo por minuto. Ou seja, se alguém quisesse fazer o exercício de moderar uma amostra dos conteúdos do Youtube composta pelos vídeos enviados apenas num determinado minuto do dia, ia demorar para cima de dois meses apenas para os visualisar, assumindo que visualizava esses conteúdos durante 8 horas por dia e sem direito a fins de semana. Esta escala colossal torna tal modelo impossível.
Mas mesmo ignorando tal limitação prática, a principal razão pela qual as plataformas não devem ser consideradas editores prende-se com as consequências desse regime para o utilizador final. Se as plataformas puderem ser responsabilizadas pelos conteúdos dos utilizadores, estas vão naturalmente reduzir a liberdade dos seus utilizadores. Vão assumir um forte controlo sobre o que é publicado, por forma a minimizar os seus próprios riscos, receando tal responsabilização. Ficam sem qualquer incentivo para permitir aos seus utilizadores a liberdade de publicarem o que bem entenderem. Isto alteraria a Internet como a conhecemos. Pensemos na Primavera Árabe, ou no Movimento #MeToo, nunca teriam acontecido. Nenhuma empresa no seu perfeito juízo iria permitir que mulheres denunciassem, sem provas, casos de abusos sexuais na sua plataforma, ainda para mais contra homens bastante poderosos, pois tais denuncias poderiam, em abstracto, constituir um crime de difamação - pelo qual a plataforma seria responsabilizada. É legítimo defender que não devem existir plataformas que permitam aos utilizadores publicar conteúdo sem que alguém o verifique e aprove a sua publicação previamente, não se vá dar o caso de poder ser considerado uma difamação ou cometer qualquer outra ilegalidade. Mas creio que não haja muita gente a defender uma Internet - ou uma sociedade - nesses moldes. Os problemas relacionados com liberdade de expressão devem ser tratados pelo sistema de justiça, a posteriori. Não há qualquer razão para impôr uma censura preventiva generalizada à sociedade para lidar com esse tipo de risco.
Temos já uma pequena amostra do que seria tal regime. Em matéria de direito de autor, conteúdos corriqueiros publicados por utilizadores, que não prejudicam os interesses económicos autores e provavelmente se enquadrariam num conceito (americano) de fair use, são frequentemente apagados sem critério, sem análise humana e sem direito a recurso, bastando apenas uma denúncia ou uma detecção automática. Isso acontece porque as empresas não querem arriscar ser responsabilizadas por tais conteúdos e, por via das dúvidas, mais vale apagar.
Outro exemplo clássico é o que aconteceu, em 2018, quando o Senado dos EUA aprovou o Fight Online Sex Trafficking Act e o Stop Online Sex Trafficking Act (mais conhecidos por FOSTA-SESTA). Esta legislação mudou parcialmente o regime das plataformas, acabando com a sua neutralidade em relação a alguns conteúdos que alojavam. As plataformas passaram então a poder ser responsabilizadas por conteúdos ilegais relacionados com tráfico sexual, mesmo que não tivessem conhecimento da presença desse conteúdo na plataforma. Esta legislação teve efeitos imediatos: as plataformas apressaram-se a "limpar" todo e qualquer conteúdo que pudesse ser remotamente relacionado com sexo - o Tumblr foi o caso mais conhecido. Esta "limpeza" de conteúdos expulsou das plataformas todas as pessoas que publicavam conteúdos relacionados com sexo, mesmo que perfeitamente legais e não relacionados com tráfego sexual - mas as plataformas não estiveram para correr riscos. Esta lei colocou em perigo comunidades especialmente vulneráveis, como comunidades queer, ou trabalhadores sexuais que deixaram de poder contar com alguma segurança e controlo que a rede proporcionava, porventura sendo forçadas a voltar à prostituição de rua, muito mais perigosa. Sobre o assunto, ver esta peça da Engadget .
Há ainda alguns mitos que cabe esclarecer. O primeiro: o actual regime de neutralidade (ou limitação de responsabilidade) das plataformas não é nenhuma lacuna legal, tem consagração expressa na Directiva do Comércio Electrónico, que tem mais de 20 anos. O segundo: esta limitação de responsabilidade das plataformas não é ilimitada. Se a plataforma tomar conhecimento de determinado conteúdo ilegal alojado nos seus serviços, por exemplo através de uma denúncia, tem a obrigação legal de o eliminar rapidamente. Se não o fizer, perde esta protecção e assume a responsabilidade por aquele conteúdo ilegal. Por último: não se trata de um regime excepcional, dado de favor às tecnológicas. É um regime de resonsabilidade típico de intermediários. Pensem num exemplo do mundo analógico: se eu fizer uma burla enviando documentos falsos por correio com o intuito de enganar a vítima do meu esquema, não caberá na cabeça de ninguém, em princípio, responsabilizar os CTT porque entregaram esses documentos. Mas se for provado que os CTT sabiam que eu estava a usar os serviços deles para cometer burlas e nada fizeram, aí sim faz sentido que sejam responsabilizados.
É preciso regular as plataformas? Obviamente que sim. Mas equivalê-las a editores tradicionais é o pior solução possível e imaginária. Aliás, foi precisamente para evitar essa falsa equivalência que se criou o regime actual - mas para essa história sugiro a leitura do texto abaixo.
Este texto tenta resumir os principais argumentos deste artigo. Para um maior desenvolvimento, recomenda-se a leitura integral do mesmo.
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