Stayaway, a app da infundada esperança

Direito & Tecnologia #9

Coluna no Odivelas Notícias de 22 de Outubro de 2020


O caso da semana em termos de Direito & Tecnologia foi sem dúvida o anúncio da eventual obrigatoriedade de utilização da app Stayaway, medida anunciada e defendida por António Costa. O Governo submeteu à Assembleia da República uma proposta de lei, com pedido de prioridade e urgência, no sentido de obrigar ao "uso de máscaras ou viseira para o acesso ou permanência nos espaços e vias públicas", e ainda à "utilização da aplicação STAYAWAY COVID em contexto laboral ou equiparado, escolar e académico". Ambas as propostas parecem reunir elevados níveis de consenso político: consenso a favor do uso das máscaras, consenso contra a obrigatoriedade da Stayaway Covid (com excepção do PS, que se diz dividido sobre a questão da app).

A obrigatoriedade do uso de uma aplicação de rastreamento de contactos não encontra paralelo na Europa, somente em Estados autoritários como a China. Entraria em explícita contradição com as recomendações da Autoridade Europeia de Proteção de Dados, da Comissão Europeia e do Conselho da Europa. Tal não bastasse, seria ainda uma violação dos termos e condições estabelecidos por Google e Apple quando disponibilizaram aos governos o serviço do qual a app depende para funcionar. Até os próprios criadores da app portuguesa manifestaram bastantes reservas.

Mas António Costa não está sozinho. Em muitos espaços de opinião na imprensa e mesmo nas redes sociais, não faltou quem se mostrasse pronto para dar o peito - o seu e o dos outros - às balas. "É os meus direitos que querem? Levem-nos todos! Faço o que for preciso!" É curioso como algumas pessoas tão prontamente se disponibilizam a abdicar dos seus direitos. Não será devido a um grande espírito de sacrifício, próprio dos mártires que acham ser, a explicação é mais simples: como não lhes atribuem grande valor, facilmente abdicam deles.
O direito mais frequentemente atacado é o direito à privacidade. Não faltou quem culpasse a Comissão Nacional de Protecção de Dados, ou "esses tipos da privacidade", que não deixam que a app seja mais... ousada. Houve até quem buscasse inspiração no modelo chinês.
Outros tantos apontaram também o dedo a quem usa Facebook, Instagram e outros, e depois vem reclamar por causa da privacidade. Vale a pena determo-nos um pouco na confusão que vai na cabeça dessas pessoas e nos sintomas que revelam.

O desprezo pela Privacidade é antes de mais um desprezo pela Liberdade. Simplesmente por vezes reduz-se a segunda à primeira, para não soar tão mal. Para essas pessoas talvez fosse útil, antes de tudo, definirem o seu conceito de privacidade. Para mim, privacidade é a liberdade de escolhermos que partes de nós revelamos e a quem. É a liberdade de colocar barreiras. É uma escolha que cabe a cada um, e essas barreiras não têm de ser iguais para todos. Colocamos diferentes barreiras a diferentes pessoas, e o mesmo vale para empresas e serviços. Essas barreiras também não são imutáveis, aumentam ou diminuem frequentemente, quando bem o entendemos. Hoje dizemos sim, amanhã teremos todo o direito de dizer não, ou o inverso. Quando dizemos não, estamos a exercer o nosso direito à privacidade, mas também o fazemos quando dizemos sim. Portanto o argumento do "usas o Facebook e estás agora preocupado com a privacidade?" não se revela muito diferente do ciumento "falas com os outros, mas não queres falar comigo?". Como se a forma como usamos a nossa liberdade precisasse de ser justificado perante terceiros, para ser legítima. Como se o direito à privacidade tivesse de ser pré-aprovado, e só concedido a quem tenha "ficha limpa". "Tens TikTok? Então te queixes!", muito ao estilo do "com saia curta à noite? Estava a pedi-las!".

Mas onde essas pessoas falham verdadeiramente nem é na sua visão a preto e branco sobre privacidade, é em passarem ao lado da questão que realmente importa aqui: a eficácia da app. Tão preocupados que estão em serem os primeiros a dar o exemplo, que nem sequer se perguntam se a app funciona. Pegando nos números da app italiana, parecida à nossa, Luís Aguiar-Conraria, no Expresso, conclui que 99,85% dos alertas emitidos pela app são falsos alarmes. Estes números são deveras preocupantes. Até há uma semana, 152 pessoas tinham ligado para a Saúde 24 por indicação da app. O que equivaleria a dizer que, desde o seu lançamento, a app poderá ter ainda não sinalizado um único doente COVID-19. Da Dinamarca vêm dados ligeiramente melhores: é detectado COVID-19 em 1% dos alertas feitos pela app. Utilizando antes os dados dinamarqueses, concluiríamos então que a nossa app teria, desde o seu lançamento e até agora, detectado 1 a 2 pessoas infectadas.

A questão da eficácia não releva apenas para se tomar posição sobre o assunto, é também crucial para aferir da constitucionalidade da medida. Se a app não for eficaz, a medida é inconstitucional. Ou em juridiquês: tal restrição de direitos fundamentais não passa o teste constitucional da proporcionalidade porquanto a ineficácia da app revela que a medida é inadequada ao fim a alcançar. Esta dificuldade não será ultrapassada com um maior número de adesões nem com o decretar de estado de emergência ou outro. Outros ângulos haverão que permitem igualmente questionar a constitucionalidade da medida, é certo. Por exemplo, como proceder à fiscalização, que está a cargo das polícias, dos telemóveis dos cidadãos, sem com isso passar linhas vermelhas? Já para não falar do mero conceito de termos o Estado a obrigar os cidadãos a instalarem uma app no telemóvel. Mas creio que a questão da eficácia é quanto baste para ser considerada inconstitucional.

Era tão bom, não era? Uma app mágica, que detectasse casos de COVID-19. Ou um botão mágico que fizesse aparecer uma vacina. Ou algo que acabasse com isto de uma vez. Mas o que temos é a app Stayaway Covid. Não esquecer: a app NÃO vos mantém mais seguros e NÃO vos avisa sobre pessoas infectadas à vossa volta. O que a app pode fazer é eventualmente avisar que esteve em contacto com alguém que testou positivo para a COVID-19. Mas mesmo assim ela só vos pode avisar sobre uma ínfima parte dos contactos passíveis de transmissão da doença, isto é, apenas os contactos em que: 1) ambas as pessoas tenham a aplicação activa, 2) estejam a menos de 2 metros uma da outra durante mais de 15 minutos, 3) a pessoa infectada tenha recebido do médico o código necessário para colocar na aplicação e 4) tenha inserido voluntariamente o código na aplicação. Portanto o melhor é mesmo continuar a seguir todas as normas de higienização e distância física, porque essas sabemos que funcionam.

Eduardo Leonardo dos Santos
Advogado
Presidente da Associação D3 - Defesa dos Direitos Digitais
www.direitosdigitais.pt

 

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