O estranho caso do Sapo Vídeos

Lançado a 28 de Dezembro de 2006, o Sapo Vídeos já não chegou a celebrar 20 anos. Em Julho do ano passado, foi anunciado (Aberto Até de Madrugada; EchoBoomer; Pplware) que o serviço de partilha de vídeos ia ser encerrado, continuando apenas a prestação de serviço a entidades parceiras. Não foi criado qualquer plano para preservar o acervo da plataforma, como uma possível parceria com o Arquivo.pt. Aos utilizadores foram dados pouco mais de 2 meses, em pleno Verão, para fazerem backups dos seus vídeos. A 17 de Setembro os utilizadores deixaram de conseguir enviar novos vídeos, e o apagamento geral ocorreu a 1 de Outubro de 2023.

Nessa data, todo o arquivo foi apagado pelo Sapo.

Como refere o Aberto Até de Madrugada, «durante muitos anos o SAPO Videos pode ser equiparado ao "YouTube português"», uma plataforma pioneira no país. Quase tão antigo como o Youtube, e lançado numa época em que o Youtube estava longe de ser o monopólio que é hoje, o Sapo Vídeos tinha conteúdo antigo que presumivelmente não está disponível em mais lado nenhum. Embora a plataforma, com o tempo, tivesse perdido a preponderância que outrora teve, e tivesse já há alguns anos fechadas as inscrições a novos utilizadores, o seu arquivo é um retrato da Internet portuguesa naqueles primeiros anos em que o conteúdo vídeo começava a ganhar espaço nos conteúdos consumidos online e os utilizadores partilhavam os primeiros vídeos. É por isso uma perda inestimável do ponto de vista do arquivo do património histórico.

O que até agora me tinha escapado era o timing deste anúncio e a estranha coincidência (ou não) com a entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 47/2023, que transpõe para a ordem jurídica portuguesa a Directiva do Mercado Único Digital. No seu famoso artigo 17º, esta directiva traz novos encargos e responsabilidades pesadíssimas para as plataformas de partilha de vídeos online, incluindo a possibilidade de serrem responsabilizadas pelos conteúdos enviados pelos utilizadores, caso não obtenham licenças prévias para esses conteúdos ou não instalem filtros de upload que o Sapo não tem e cujo desenvolvimento custou à Google cem milhões de euros.

Vejamos:

O decreto-lei foi publicado a 19/06/2023, com entrada em vigor a 04/07/2023. Cerca de duas semanas depois, o Sapo Videos decide encerrar e apagar todo o conteúdo dos utilizadores. A parte que explicita a responsabilidade criminal das plataformas no caso de não cumprirem os requisitos do famoso artigo 17º (alteração ao artigo 195º do CDADC), entraria em vigor a 01/01/2024.

Se há provas de relação causal? Não, e provavelmente nunca haverá - trata-se de uma decisão interna de uma empresa privada.
Mas sabem o que também não há? Coincidências.

 

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